Jussara Lucena, escritora

Textos

O corvo

Enquanto o corpo da mulher ardia na fogueira e o cheiro de carne queimada se espalhava nos arredores da praça, Olga arrumava as poucas coisas que tinha. Havia decidido voltar para as terras de seus pais. Viajaria com um comerciante que concordou em leva-la depois que ela lhe prestou alguns favores. Precisaria suporta-lo durante o trajeto, mas sua vida correria perigo se continuasse ali. Na Germânia parecia haver um pouco mais de tolerância com pessoas como ela. Saiu escondida no fundo de uma carroça, carregada de peças de couro. Mal pôde ouvir os gritos da multidão que procurava a outra bruxa.

No meio da viagem entre Estrasbourg e Hohenzollern, antes de cruzar o Reno, o grupo de três carroças foi assaltado. Em meio à confusão, Olga conseguiu esconder-se na mata, e só saiu de lá quando já estava quase escurecendo. Abrigou-se no oco de uma árvore.

No dia seguinte, com fome, caminhou até encontrar um pequeno lugarejo. Tentou passar despercebida, mas abordou uma senhora e pediu ajuda. Herta, a velha mulher deu-lhe um pedaço de pão, que Olga apressou-se em engolir. Enquanto comia, percebeu que Herta carregava algumas ervas. A mulher percebeu os olhares de Olga para as plantas e colocou-se na defensiva.

Olga arriscou dizer que sabia como usar as plantas. Herta perguntou se ela entendia o risco que corria. Olga contou-lhe que certa vez preparou uma infusão, que uma amiga levou até um menino moribundo, o remédio não o salvaria, mas aliviaria suas dores. A amiga morreu numa fogueira, ela, covardemente se escondeu. A mulher pediu que ela falasse baixo, pois a Inquisição tinha ouvidos espalhados em cada canto. Depois, Herta pediu que Olga a seguisse.

Quando chegaram a uma velha casa, o marido de Herta, Franz, cuidava de um homem que gemia em uma cama improvisada. Quando percebeu a presença de Olga, assustou-se e olhou para a mulher com ar de repreensão. Ela pediu que Franz mantivesse a calma, pois confiava na jovem.

Franz relatou que encontraram aquele sujeito desacordado no caminho, ao norte da vila. Estava com muita febre e delirava, dizendo ser o Príncipe de Hohenzollern. O colocaram na carroça e levaram para casa.

O homem tinha o corpo coberto por manchas, muitas feridas e febre alta. A jovem pediu licença à Herta, fez fogo, colocou água numa panela e preparou uma infusão com ervas da cozinha e outras que carregava em seu embornal. Levaram o homem até um estábulo, onde Olga cuidou dele.

Certo dia, quando Olga dormia sobre um monte de feno, acordou com o sujeito apertando o seu pescoço. Ela sufocaria, não fosse Franz atingi-lo com um pedaço de madeira. Tomaram o cuidado de amarrá-lo. Quando o homem despertou, tentou desesperadamente desatar as cordas. Os três observavam o sujeito. O velho perguntou-lhe quem era e o que lhe havia acontecido. O homem, após esforçar-se muito, disse que não conseguia lembrar.

Olga comentou que ele, durante seus delírios, repetia o nome Dieter. Franz completou: Dieter, Príncipe de Hohenzollern. O sujeito respondeu que um príncipe não vestiria roupas como aquelas. Franz mostrou-lhes um anel que havia encontrado nas botas dele. Talvez fosse mesmo um príncipe.

Depois o sujeito perguntou como ele havia se curado. Herta disse-lhe que a jovem o curou com seus chás, suas ervas e muita oração. O sujeito forçou um agradecimento e silenciou-se. Combinaram seguir juntos, Franz, Olga e o sujeito, até a região de Hohenzollern.

Na manhã do dia da viagem, o estranho acordou cedo. Percebeu que Olga levantara antes e foi procura-la. Se deparou com Olga conversando com um corvo e se surpreendeu com a reação da ave com a fala da mulher. Parecia entender o que ela dizia, repetia algumas de suas palavras, indicava com o bico direções ou objetos. O corvo se afastava, voava em círculos, vinha até a mão dela e brincava com as sementes que Olga segurava.

O pássaro percebeu a presença do homem, crocitou, e voou para longe. O homem chamou-o de ave agourenta. Olga disse-lhe que as pessoas se enganavam com os corvos. Eram aves inteligentes, companheiras e brincalhonas. O homem fez um gesto de desprezo, baixou a cabeça e saiu.

Foram vários dias até Hohenzollern. O sujeito pouco falava, mas dava impressão que parte de sua memória estava de volta. No fim de uma tarde, avistaram ao longe, no alto da montanha, o castelo de Hohenzollern. A cena pareceu familiar ao sujeito e também trouxe algumas lembranças de infância para Olga.

Quando se aproximavam da área fortificada, um soldado reconheceu o sujeito e curvou-se. Chamou-o pelo nome: Manfred. Apressou-se em chamar outros homens da guarda que correram ao encontro filho do soberano Dieter.

O pai recebeu o príncipe Manfred com uma comemoração e acolheu os demais viajantes. Na festa, Manfred apresentou Olga ao bispo Gerhardt, dizendo que ela era a jovem de quem falara, a que salvou sua vida. O representante da Igreja apenas a observou e assentiu com a cabeça. Ela ficou sem jeito e preocupada.

Dias depois, Manfred observou Olga na janela de uma torre. Conversava com um corvo, parecia a mesma ave do outro dia. Apressou-se em chamar o bispo, que estava hospedado no castelo. Quando Olga se deu conta, foi presa pelas mãos e jogada de joelhos diante de Gerhardt que pressionou o anel sobre a testa da mulher.

O bispo dirigiu palavras excomungando-a e a acusou de bruxaria. Olga imaginou que a queimariam. Manfred disse que preferia ter morrido a ser ajudado por uma mensageira do demônio. Ele e o bispo arrastaram Olga até o parapeito da janela e a arremessaram de lá. Não ouviram o baque contra a calçada da praça. Olharam para baixo e não encontraram o corpo. Ouviram um crocitar vindo do alto. Dois corvos sobrevoavam o castelo, num voo intenso e persistente.

Gerhardt olhou para Manfred, que além de apavorado, começou a gritar. As manchas no seu corpo haviam voltado, já sentia os efeitos da febre que se acentuava. O mesmo acontecia com Gerhardt e seus soldados. A peste começou a se espalhar pelo castelo.

Texto selecionado para compor a Antologia Reis e Rainhas organizada pela Editora Illuminare - 2016.

Adnelson Campos
13/04/2017

 

 

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